segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

habitando o papel na gazeta do povo


Matéria da querida jornalista Helena Carnieri sobre o blog. Foi um papo gostoso sobre dramaturgia, mercado editorial, academia e produção literária voltada para a linguagem teatral.
Um blog para escrever e ensinar a ler teatro

Dramaturga e pesquisadora lança a página Habitando o Papel com o objetivo de estimular o trânsito de críticas de dramaturgia na cena brasileira



“Quantos sites de crítica literária você conhece? Agora me diga quantos sites de crítica teatral você já acessou. Agora tente lembrar quantas críticas sobre livros de dramaturgia você já leu neles. Ok, com certeza a resposta é ‘não muitas’!”
Assim a dramaturga e pesquisadora Lígia Souza Oliveira começou seu blog Habitando o Papel, com o qual espera atiçar a leitura e discussão de textos teatrais no Brasil.
“Quis pensar sociologicamente as complicações críticas da dramaturgia”, contou à Gazeta do Povo.
Já constam em sua página pessoal, além da apresentação da proposta, um texto teórico sobre as diferenças terminológicas entre drama, dramaturgia e texto dramático, conforme descritos pelo teórico Patrice Pavis em seu Dicionário de Teatro, e a análise de peças de autores em ascendência no país – Newton Moreno, Felipe Rocha, Grace Passô, Jô Bilac – e a curitibana Martina Sohn Fischer. Apesar da pouca publicação especializada para teatro, ela destaca no blog as iniciativas das editoras Cobogó e Sete Letras.
Graduada em Artes Cênicas pela Faculdade de Artes do Paraná e prestes a defender sua dissertação de mestrado pela Universidade Federal do Paraná com A Condição da Personagem na Dramaturgia Contemporânea: uma Análise de “Vocês Que Habitam o Tempo de Valère Novarina”, Lígia se interessa pelo uso da linguagem em cena.
Do autor francês pesquisado, ela trouxe a ideia que a instiga a promover a leitura de dramaturgia: o leitor empresta um sopro único à leitura. “As palavras precisam de um corpo para ganhar potência”, acredita. E nada melhor do que o texto criado para ser encenado para estimular esse contato entre letra e fôlego. Outro benefício que a leitura de peças traz, para ela, é ativar a percepção de uma forma só presente na dramaturgia.
Um objetivo mais prático do blog é estimular a publicação de crítica de textos dramáticos em espaços que hoje privilegiam o romance.
Para isso, no doutorado, ela pretende fazer um levantamento do que é (ou não) publicado no Brasil em revistas literárias. “Precisamos inserir a mentalidade de que dramaturgia é literatura.”
Produção própria
Além de analisar textos alheios, Lígia escreve para teatro. Participou entre 2009 e 2012 do Núcleo de Dramaturgia do Sesi Paraná, durante o qual escreveu Pneumático. No próximo Festival de Teatro, ela deve lançar Encontros Diários, uma das peças que integram a coletânea Dramaturgias Curitibanas.

No link:
http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?tl=1&id=1339228&tit=Um-blog-para-escrever-e-ensinar-a-ler-teatro

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

fatia de guerra - andrew knoll





 “ na morte iminente, o tempo se dobra de forma visível”

essa afirmação, retirada do próprio texto, me parece definir algumas estratégias e também a poética presente em fatia de guerra. são 18 partes divididas por asteriscos em negrito sobre a página. em cada parte, habitações diferentes, que se misturam entre figuras paternais, infantis, animalescas, ou até mesmo soldados no front, a ameaça da morte.

a morte de uma cadela que deve ser abatida por seu dono faz o tempo se desdobrar e conter no espaço de poucas páginas, alguns flashes, clarões, às vezes na cor sépia, ou até em sonhos, projeções a partir daquele acontecimento. nos deparamos com dias anteriores àquilo tudo, minutos, ou até anos, mesmo antes da existência daquele animal, mas que são pinçados da memória daqueles que povoam aquele espaço: a menina, o homem e a cadela.

a morte do cão, da cadela. ela mesma acha a arma a tanto tempo escondida, enterrada no fundo do quintal.

as falas em algumas partes são bem delineadas: ele, ela, o avô, a menina, a cadela... em outras encontramos habitações simples, como o próprio autor indica. ou não tão simples assim. as palavras, frases inteiras escritas com determinada formatação contêm em si, cada uma delas, as experienciações de universos distintos, de relações diferentes com esse tempo dobrado, fatiado pela morte próxima.

há no texto uma ferramenta de construção que ilustra a tentativa de escolher, em vão, as palavras certas. as falas são interrompidas por ‘ok’ ou ‘continue’ ou ‘repita’ ou ‘não’. trazem essa sensação de que estão, o tempo todo, escolhendo as palavras para que tudo doa um pouco menos. em vão. e revelam que a linguagem permanentemente inventa as coisas, as pessoas, as sensações, o mundo - ao mesmo tempo que as destrói.





as palavras nos envolvem em universos tão distintos ao mesmo tempo tão confusos. mas a poética, a simplicidade da existência de um animal acaba por criar na obra essa mesma aura delicada e fugaz que sintetiza a vida de um cão, que diante da complexidade produzida pelas neuroses humanas, a responde de maneira leve, o que reflete um tanto na superfície das palavras que encontramos no papel.

como falar da morte de maneira leve? dificilmente. somente quando a libertação pelas palavras, quando as possibilidades do momento da morte, fugaz, se mostram tão vivificantes quanto. as pessoas morrem, os animais morrem, as famílias morrem, as árvores morrem e as crianças também. e talvez isso não seja tudo!

mas as coisas todas doem. o afeto dói e ao mesmo tempo salva.

fatia de guerra foi escrita por andrew knoll e faz parte da coleção dramáticas do transumano editado pela 7letras. fatia de guerra acompanha na publicação a dramaturgia de diego forte, procurado.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

drama, dramaturgia ou texto dramático??





O texto abaixo trabalha com os principais termos utilizados para designar o texto escrito para o teatro, e também compõe um dos capítulo iniciais da minha dissertação. Preferi colocá-lo em formato reduzido, sintetizando os pontos que acho mais importantes para talvez, ajudar na discussão acerca do termo no Brasil a partir do Dicionário de Teatro, escrito por Patrice Pavis.






Antes de dar seguimento à discussão acerca do texto teatral na contemporaneidade, compreende-se a necessidade de apontar, a princípio, as principais definições e também o uso lexical dos termos drama, dramaturgia e texto dramático, que, no Brasil, habitualmente, designam a mesma noção. A necessidade de se inserir um tópico acerca desses conceitos se dá justamente na atualização do seu uso, já que este se modifica juntamente com as transformações dos preceitos que os regem.
Recorreremos ao Dicionário de Teatro escrito pelo pesquisador francês Patrice Pavis para tratar desde primeiro tópico. Consultamos os termos acima citados e outros para delinear seus usos na França. Após a apresentação desses conceitos, faremos uma ponte entre a utilização no Brasil e França.
         Para Pavis em seu dicionário, o uso da expressão drama faz uma referência direta à escola do drama burguês do século XVIII, cujo período mantinha o texto como o centro da produção teatral, seguindo as regras de diálogo, causalidade, ilusionismo e conflito. Conforme o teórico, o termo, de maneira mais geral, também é designado para referenciar o texto teatral, o gênero literário dramático.
Já na palavra dramaturgia, Pavis classifica a sua utilização em momentos históricos pontuais. No Sentido Original e Clássico, Pavis afirma que dramaturgia é “a técnica (a poética) da arte dramática, que procura estabelecer os princípios de construção da obra” (PAVIS, 2007, p. 113), ou seja, dramaturgia era compreendida como a técnica que a diferenciava de outros gêneros literários. Pavis esclarece que “a dramaturgia clássica examina exclusivamente o trabalho do autor e a estrutura narrativa da obra. Ela não se preocupa diretamente com a realização cênica do espetáculo” (PAVIS, 2007, p. 113). Quando Pavis prossegue a discussão apresentando a dramaturgia como a atividade do dramaturgo fica mais clara a diferença entre o uso do termo no Brasil e na França. Neste verbete o teórico apresenta a dramaturgia, assim como em Brecht, como o conjunto de estratégias e escolhas estéticas do espetáculo como um todo, passando pelo texto, ator, direção até o iluminador, figurinista e etc. Essa concepção “tende, portanto a ultrapassar o âmbito de um estado do texto dramático, para englobar texto e realização cênica” (PAVIS, 2007, p. 113) instaurando um uso mais global do termo dramaturgia.
É necessário então, discutir porque, no Brasil, ainda é tão utilizada palavra dramaturgia para se designar o texto teatral[1]. É claro que aqui, já encontramos discussões que abarcariam a dramaturgia do ator, a dramaturgia do corpo, a dramaturgia da luz e etc., mas o termo desligado de seus complementos nominais ainda é direcionado para a compreensão da parte literária, do texto escrito no teatro.
A essa questão somamos outra diferenciação de termos no Brasil e no que Pavis nos apresenta no dicionário. Quando consultamos o uso da palavra dramaturgo, encontramos primeiramente: “autor de dramas” e em seguida: “atualmente, o costume francês prefere o termo autor dramático” (PAVIS, 2007, p. 116). Seguindo a leitura deste verbete, encontra-se no emprego técnico moderno a seguinte definição de dramaturgo: “designa atualmente o conselheiro literário e teatral agregado a uma companhia teatral, a um encenador ou responsável pela preparação de um espetáculo” (PAVIS, 2007, p. 117). É a partir dessa segunda definição que irá se discutir o seu uso no Brasil.
Essa função do emprego técnico moderno no francês traduzido como dramaturgo, tem sua equivalência na prática teatral brasileira o uso da palavra dramaturgista que designa exatamente a mesma função, aquele que participa da criação cênica e atua como um conselheiro ou assistente para questões tanto literárias quanto teatrais[2]. Portanto o dramaturgo no Brasil ainda confere o status daquele que escreve o texto, mesmo que este texto seja escrito durante o processo de criação do espetáculo.
E por fim, é na definição de texto dramático, ainda no Dicionário de Pavis, que mais nos aproximamos das questões da contemporaneidade que gostaríamos de discutir neste estudo:

É muito problemático propor uma definição de texto dramático que o diferencie dos outros tipos de textos, pois a tendência atual da escritura dramática é reivindicar não importa qual texto para uma eventual encenação. [...] Todo texto é teatralizável, a partir do momento que o usam em cena. O que até o século XX passava pela marca do dramático – diálogos, conflito e situação dramática, noção de personagem – não é mais condição sine qua non do texto destinado à cena ou nela usado. (PAVIS, 2007, p. 405)

O que Pavis nos propõe ao definir a expressão texto dramático é justamente a reflexão que desenvolveremos mais adiante. Conscientes da transformação de suas características antes tão pontuais, a sua definição passa por discussões inclusive acerca da própria concepção de teatro na contemporaneidade. 

REFERÊNCIA: PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1997.





A partir deste panorama rápido dos termos na utilização francesa e seus equivalentes no Brasil, podemos realizar duas afirmações:


- diferentemente do uso do termo na França, dramaturgia no Brasil é muito ligada à concepção de texto dramático. E a preferência francesa pelo uso de autor dramático, para designar a figura que escreve - no lugar de dramaturgo, como se usa no Brasil - se justifica também pela confusão que esses termos ainda apresentam. Nestas classificações encontra-se também um problema de tradução, não dando ênfase necessária na diferenciação dos termos dramaturgo e dramaturgista. Mas, mesmo assim, o que se evidencia nesse panorama de definições é que, mesmo nas classificações de Pavis, encontramos passagens que deixam sinônimas as três expressões. No Brasil ainda se utiliza texto teatral como sinônimo de dramaturgia, drama e texto dramático.

- retirado o lugar central do texto dramático no espetáculo teatral, a escrita se transformou e não possui nenhuma função fundadora no acontecimento cênico. A dramaturgia se torna, então, mais um elemento juntamente à iluminação, figurino, atuação e etc. Essa agitação na sua utilização lexical também se justifica na transformação da função do texto teatral. Trata-se de condições interligadas. Mesmo que em meio às crises e baixas inovações, a dramaturgia continua existindo e produzindo novas maneiras de relação com cena, longe da sua tão proclamada extinção.






[1] Essa afirmação se justifica nos inúmeros núcleos, grupos de estudos, centros de investigações, disciplinas acadêmicas e teorias, que carregam o termo dramaturgia e são estritamente ligados ao texto teatral.
[2] Podemos encontrar alguns aspectos da prática do dramaturgista nos exemplos de Maria de Lourdes Rabetti - Beti Rabetti - em seu artigo O Laboratório do Dramaturg e os Estudos da Genética Teatral: Experimentos no qual ela cita algumas experiências como Dramaturgista junto à carioca Companhia de Encenação Teatral.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

agreste – newton moreno





newton moreno tem dois livros publicados, um deles com dois textos e o outro com três, um publicado pela editora terceiro nome e o outro pela imprensa oficial em parceira com a aliança francesa. quero muito escrever sobre os dois, mas pra começar escolhi o primeiro a chegar nas livrarias.

a coleção palco sur scene foi um projeto realizado no ano da frança no brasil e contém vários livros importante para a literatura dramática. o livro de newton moreno contém três peças: agreste, body art e a refeição. neste post irei abordar somente o primeiro, agreste, que foi encenado por marcio aurélio e rendeu ao dramaturgo vários prêmios.

correndo um pouquinho, somente por enquanto, das principais questões da temática do texto, uma pergunta importante nos recorre quando da leitura deste texto: qual o limite, se é que ele existe, entre a cultura popular e o que se costuma dizer de “alta cultura” ou “arte”? qual a diferença entre a cultura popular produzida no sertão nordestino e aquele da periferia das grandes cidades? é certo que a cultura popular existe mas é cada vez mais difícil delimitar os seus parâmetros, as suas questões particulares, suas qualificações.

o texto de newton moreno apresenta a conduta de dois personagens principais a partir de um narrador, como ele próprio descreve, “um velho contador de histórias” e com isso percebemos em todo formato da fala, na arquitetura das palavras, uma presença da oralidade peculiar dos contadores tradicionais do nordeste, sem cair, de maneira alguma, num estereótipo dessa figura. e com ele, o texto revela uma capacidade imensa de envolvimento a partir da narração de uma história, uma bela história.





e justamente por conta dessa inserção tão forte da narratividade é que podemos nos perguntar sobre qual o lugar dessa dramaturgia em relação às tradicionais características do teatro: a apresentação de personagens a partir de suas próprias ações, sem a presença de um terceiro que narre sua história. é fato que os personagem se apresentam e dialogam no espetáculo, porém a presença do contador é a maior característica da peça.  isso torna o texto uma singularidade em relação aos formatos rígidos do drama e nos propõe uma questão: o que faz então um texto ser um texto para o teatro.



moreno nos responde a medida que no texto, encontramos a necessidade da existência de um corpo, que age, se movimenta, dança: “das união destas duas linguagens – oralidade e a dança-teatro; verbo e movimento – será feito o espetáculo” incita o dramaturgo.

e por outro lado, o que mais nos surpreende é a capacidade do texto de tocar em assuntos que ainda são considerados tabu de maneira tão sensível. costumo dizer que a maioria das experiências artísticas que revelam uma temática homossexual normalmente são histéricas, burguesas ou políticas. não é o caso de agreste.


a fala do contador revela essa situação de maneira poética e sensível sem esquecer da frieza e objetividade que ela pede. o homossexualismo é revelado de maneira revoltosa pelos personagens da comunidade, porém o que mais nos chama atenção é a simplicidade e liricidade com que habilmente o autor arquiteta o texto.  a poeticidade não é frágil ou banal. com metáforas e outras figuras de linguagem o texto se revela sensível e rebuscado, não apresentando a temática de forma alienada mas tampouco requerendo um espaço político forçosamente. o político se dá através da própria linguagem, que instaura uma nova forma de vivenciar as experiências de leitura, revelando uma nova maneira de relacionar-se consigo mesmo e com a sociedade.

ninguém falou que seria fácil - felipe rocha




o segundo texto do dramaturgo e também ator felipe rocha foi editado pela carioca cobogó e coleciona três prêmios de melhor autor em 2011.

são personagens facilmente reconhecíveis: o pai, a mãe, a filha, a filha que se torna mãe, o filho, o pai, o avô... essas figuras vão se mesclando, se transformando de maneira a nos apresentar flashes de suas existências, que, seguindo uma cronologia – mas não uma unidade de tempo - nos mostram o cotidiano de uma família, que bem poderia ser a nossa.

o texto é composto por várias cenas desconexas que são alinhadas sem que necessariamente apontemos um início ou um fim bem delineado. são flashes que apresentam de maneira absurda e hiperbólica situações típicas de toda família: a invenção de histórias antes de dormir, a criança que se perde durante uma viagem, o pai que espera de madrugada a chegada da filha jovem, a atração por um empregado da casa, a mãe que trabalha o dia inteiro para sustentar a casa, o pai que fica em casa cuidando dos filhos... situações, tempos, ficção, realidade, personagens vão se mesclando na construção de uma reflexão acerca da família e dos papéis (rotativos?) que encarnamos neste círculo de pessoas.

um recurso que a todo tempo é utilizado é a ênfase na situação de tempo presente ressaltando que se trata de atores e público compartilhando o espaço do teatro. o texto propõe que, mesmo num contexto, numa situação ficcional, a presença do público seja evocada, como no trecho: “e quem vai ficar com a gente?/ essa senhora aqui pode cuidar de vocês. não pode? [para uma pessoa da platéia]”.

percebemos também que a dramaturgia foi escrita à medida em que foi encenada, deixando claro que algumas opções da dramaturgia foram introduzidas pela encenação e incorporada ao texto. isto apresenta, de certa maneira, um grande risco para o leitor que não carrega o interesse na construção da cena.

por exemplo: mais ou menos na metade do texto encontramos a rubrica: “na nossa versão, eles montam uma tenda de lençóis, depois de uma certa disputa pelos objetos que estão em cena.”  essa rubrica quando revela a escolha “na nossa versão” indica que esta foi uma opção da encenação e que pode ser modificada em outras ocasiões. no trecho final do espetáculo encontramos novamente a indicação: “na nossa encenação, os três atores voltam, durante a última fala de patrick, para dentro da tenda de lençóis que montaram no início da peça. ouvimos suas vozes por trás dos panos”.



a cena final é toda arquitetada a partir da existência dessa tenda de lençóis – as falas dos atores são proferidas de dentro dela – porém o autor se exime na indicação da necessidade desse signo material. parece uma questão simples, menor, sem importância, mas ela esconde, ainda, um embate na relação texto e cena. estando de acordo com a liberdade do processo de criação coletiva, ou colaborativa, o autor recua na hora de impor signos materiais para a texto, com o medo de ser rotulado como “ditador”, isto nos parece.

esse fato faz com que o texto enquanto tal se mostre frágil, com buracos que ao invés de ressaltar o espaço em aberto da encenação acaba por criar uma falha nas relações que se instauram no papel e que saltam aos olhos do leitor puramente interessado no universo ficcional ali apresentado.

qual a solução? inúmeras, que ao mesmo tempo, se apresentam insatisfatórias. como dar cabo de duas linguagens e de dois receptores simultaneamente, a platéia e o leitor? a arquitetura lingüística que o texto promove, com os deslocamentos de tempo, espaço e sujeitos, fazem jus aos prêmios teatrais que recebeu. porém, quando da sua publicação, alguns pontos deveriam ser repensados com mais cuidado.

aparte essa questão, a dramaturgia de felipe rocha nos encaminham à várias reflexões. a fluidez das cenas tão distintas entre si nos carregam, encaminham para nós mesmo e então consideramos: porque a família é algo tão centralizador na formação do sujeito? desde a gênese bíblica a instituição familiar se mostra como normalizadora  catalizadora e responsável pela vida em sociedade. mas por quê? por que os laços familiares se mostram, e ainda hoje se impõem, indissolúveis? já sabemos há muito que a consangüinidade não é mais a característica que os une. por que não abandonar um filho? por que não abandonar os pais? que ética é essa que dita as relações familiares? aprisionamentos? ninguém falou que seria fácil, então, por que insistir?

o texto não diz. são os buracos, propositais, nos quais o leitor se projeta.

por elise - grace passô




o que nos salta aos olhos na escritura de grace passô em por elise, publicada pela cobogó, é a imersão em um espaço de poesia cênica, de presença teatral na escritura de suas peças. isso se justifica, em grande parte, pela sua construção em processo colaborativo – na comunhão com atores e equipe técnica. a horizontalidade das relações, característica desse processo de construção da cena, revela no texto a sua dependência, seu condicionamento à encenação de origem, o que nas mãos da dramaturga mineira ganha em sublimação e liricidade, nos despertando o interesse. 

em complemento, o texto revela uma discussão metateatral, ressaltada na cena final, quando se revela o além cena: as cortinas são levantadas, todo aparato cênico se torna discurso. a primeira cena, onde a rubrica indica: “a peça não começou”, traz à tona a discussão sobre a ficção e a realidade, o que também é ressaltado na partitura de ações dos atores, o que acentua a idéia de que estamos todos reunidos em uma sala, compartilhando um tempo e espaço presente, a comunhão atores e público. antes de tudo, trata-se de teatro.

justamente por ser escrito em processo criativo alguns pontos da publicação nos chamam atenção e acabam por ressaltar a capacidade de lirismo da autora. em um encontro em curitiba, grace revelou que as rubricas dos textos são revisadas e reescritas de maneira distinta em relação à versão que é utilizada durante o processo de montagem da peça. ela nos contou que, nas publicações, as rubricas não somente descrevem algumas ações que os atores/personagens devem executar em cena, mas principalmente elas revelam a importância dessas ações para a poética do texto, e apresentam ao leitor, uma áurea, uma superfície que instaura um ambiente poético no texto. essa é a primeira questão que podemos observar no texto, já que na cena “início. o recomeço” a rubrica descreve movimentos de tai chi chuan, revelando as ações dos atores. mas além disso, a rubrica conversa (literalmente), convence o leitor acerca da necessidade desses movimentos para a construção desse ambiente cênico e literário.








outro ponto importante que nos intriga na leitura do texto é justamente a impressão de que todas as palavras são direcionadas ao ator. no epígrafe da peça: “bilhete da senhora elise para os atores”, isso fica mais claro. essa característica pode, em alguma instância, afastar o leitor mais acostumado às características tradicionais da literatura dramática. Isso acontece justamente porque a todo momento, somos convidados a nos afastar da ficção apresentada em fragmentos e nos evoca à liricidade das palavras ali presentes, das imagens construídas, arquitetadas na cena. além disso, o dramaturgo suíço valère novarina nos revela “não vejo diferença entre o leitor e o ator. o trabalho é o mesmo, doar o seu sopro para criar a instância de poeticidade da obra”. então, ao mergulhar no texto de grace, o leitor é convidado a vivenciar aquelas palavras, aquelas imagens através do sopro que carregamos e que emprestamos à obra no momento em que a lemos. 


os personagens estão num tempo espaço suspenso. é uma rua, eles correm, mas estão submersos em suas questões, suas dúvidas, seus medos. não há ação, dessas tradicionais, reconhecíveis num drama convencional, apresentação dos personagens, apresentação do conflito, ápice... estamos num tempo espaço suspenso, lírico.

cuidado com o que planta no mundo. todos os signos que se apresentam no espetáculo - o abacate, o cachorro, as galinhas, os cigarros, o colchão, a corrida, os latidos, a espuma - tudo isso no fim das contas nos fala sobre a impossibilidade de proteção, sobre a impossibilidade de controlarmos os nossos próprios sentimentos e de nos colocarmos em condição de segurança. todas essas questões são apresentadas de maneira extremamente suave e lírica, que por hora, com sua força poética, nos arrebata enquanto seres humanos e nos toca, sensorialmente, através dessas imagens desconexas, de situações cotidianas e absurdas, pois estão no palco e nos convidam a retirá-las de sua inércia diária, e nos põem em pé, atônitos, perplexos sobre o advento da própria vida. "palmas que ao invés de contemplar o outro, nos põem a pensar sobre nos mesmos".

alguém acaba de morrer lá fora – jô bilac





escrever sobre o texto de jô bilac é ao mesmo tempo simples e complexo. simples pois todas as estratégias de escrita estão num universo reconhecível para a dramaturgia ocidental. e complexo porque lidar com essas referências sem cuidado, pode aplicar à obra um universo que a ela não pertence, a tradição.

a maioria das obras que nos deparamos na contemporaneidade raramente se pode rotular um gênero. todas trabalham num limite, numa hibridez de possibilidades que fica impossível classificá-las num gênero. esse enquadramento, na maioria das vezes, até diminui o valor das obras.

este não é o caso de alguém acaba de morrer lá fora.

o próprio autor classifica: se trata de uma comédia. para tanto, fui consultar uma bibliografia básica, relembrar alguns dos principais tópicos do gênero na tradição, para dar cabo dessa rotulação. num dos livros, numa reflexão sobre o sátiro, encontramos a definição de teatro de boulevard como o responsável pelo afastamento, a desvalorização das obras satíricas. e me parece ser esse gênero francês do século xix que pode muito bem dar cabo das ferramentas encontradas nesta obra, com algumas exceções que iremos apontar mais tarde.

alguém acaba de morrer lá fora apresenta quatro personagens numa cafeteria, que num acaso se encontram a acabam por compartilhar a morte de alguém lá fora, o que acaba por produzir reações distintas entre elas.

a estrutura da peça se aplica diretamente ao teatro de boulevard por conter nela todas as características da peça bem-feita, do drama burguês, principalmente a condição social de seus personagens. a primeira característica que nos deparamos é a utilização da rubrica como descrição minuciosa do espaço, o lugar onde toda a ação irá transcorrer, a unidade de espaço. as rubricas detalhistas, que encontramos ao longo de todo o texto, também revelam pontualmente as caracteríscas dos personagens, numa descrição psicológica e também histórica, esta, característica principal dos textos dramáticos tradicionais por essência. e a estrutura principal que caracteriza o drama é o desenvolvimento das ações somente pela fala dos personagem, ou seja, a intersubjetividade nessa comédia é respeitada do início ao fim.







outras duas características marcantes acerca do entendimento do teatro de boulevard se dão principalmente sobre a temática e o sobre fato de produzir "divertimento com pouco esforço intelectual". me parece ser essa a intenção do texto, que apresenta a morte como tema central mas nela não se aprofunda e nem ataca. não estamos aqui também levantando a bandeira de que toda a comédia deva carregar em si um teor político social de denúncia. mas também não acreditamos ser na superficialidade que a comédia contemporânea irá recobrar o seu lugar de inventividade. a peça de jô bilac nos transparece uma comédia de bom tom que pretende, assim como o teatro francês de boulevard "apresentar apenas a superfície brilhante da vida social [...], os autores nunca correm o risco de perturbar".

a ferramenta que encontramos na peça que difere da estrutura da peça bem feita, se apresenta também como uma invenção já normatizada, principalmente pelo cinema hollywoodiano. a peça inicia com uma trama central e logo em seguida apresenta mais de uma opção de desfecho do enredo. nesta peça encontramos cinco opções diferentes como reações ao fato de alguém ter morrido lá fora, cada uma delas se relacionando diretamente com uma das personagens. em todas as cenas a linguagem do texto continua a mesma.

é certo que jô bilac consegue manipular a linguagem e a estrutura da peça bem-feita, aplicando-a à comédia e ao contexto da atualidade de maneira muito bem arquitetada, o que reforça a eficácia dessas ferramentas na construção de uma história. alguém acaba de morrer lá fora tem um enredo muito bem elaborado em todas as suas versões e com certeza exemplifica muito bem como as tradicionais estratégias da dramaturgia clássica podem ser utilizadas. mas aqui fica a nossa provocação: todas essas questões ainda fazem sentido na contemporaneidade? elas se apresentam como um espelho, reflexo do nosso dia a dia, superficial e cotidiano. mas qual será então a relação entre a realidade e a arte no nosso tempo? nivelar por baixo é subestimar a si próprio.

alguém acaba de morrer lá fora é editado pela cobogó.

aqui - martina sohn fischer




a dramaturgia aqui de martina sohn fischer faz parte da coleção dramáticas do transumano com curadoria do dramaturgo e diretor roberto alvim e lançada pela editora 7letras. o texto de martina é acompanhado no mesmo volume por happycínio de angélica rodrigues.

a idéia da coleção é apresentar dramaturgias que se ligam ao conceito de dramáticas do transumano, ao qual, alvim propõe a criação de outro teatro não ligado somente às modulações de tempo e espaço, antes disso, o conceito propõe a transformação do sujeito o qual povoa a obra dramática. portanto, definindo de maneira rápida, as produções que compõem essa coleção partem de uma nova experimentação do tempo e espaço a partir de outras possibilidades de habitá-los, numa uma outra percepção, fora das condições enquadrantes do ser humano.

aqui está localizada neste contexto.

a primeira observação que podemos levantar acerca da dramaturgia de martina, se dá, justamente, na formatação que o texto propõe. divido em oito tempos, o texto se liberta do formato tradicional da dramaturgia (falas e rubricas) e se envereda por questões já tão exploradas pela poesia concreta por exemplo, mas extremamente raras nas experimentações da escrita teatral: a visualidade da palavra no papel. inovadoras não só por sua raridade, mas principalmente por adicionar a libertação da palavra na página à questões ligadas à oralidade e à configuração dos sujeitos no teatro.






essa percepção se dá principalmente na separação do texto por grafias diferentes, propondo que, independentemente da quantidade de emissores, se trata principalmente de vozes contrastantes,  de percepções antagônicas que nos fazem questionar a existência de um personagem, de um ser ao qual estamos acostumados a encontrar na dramaturgia.

além disso, a visualidade da palavra no papel também nos propõe um ritmo de leitura, assim como modulações de altura, intensidade e velocidade, ressaltando uma das proposta de dramaturgia: a que se trata da fala, não enquanto comunicação, mas antes de tudo, enquanto fisicalidade, sonoridade presencial.

aparte essas questões, o texto nos mostra a relação de um eu com um corpo fora dele próprio, que a ele retorna, ao pó. por vezes ele o pertence: “meus pés separados do corpo”, em outras este corpo se relaciona como um outro: “eu quero possuir o corpo de vidro”; mas sempre propondo uma experiência fora das relações intersubjetivas ou das relações com o inconsciente. essas configurações se mostram como pós (ou pré?) humanas, mas sempre torcendo, contestando, e portanto se esbarrando na própria condição de ser, com suas perspectivas carnais, da ordem do excremento, do orgânico, do físico que existe no humano. a repulsa não é à carne e sim ao ordinário.

não é só uma inovação no campo da palavra no teatro, aqui renova o  entendimento físico, da ordem do orgânico, o sopro das relações do ator e do leitor com a palavra. a troca realizada com texto transpõe a interpretação de uma fábula e nos propõe a interação física, sonora e orgânica com essas palavras. aqui traz a palavra enquanto presentificação, estado evocado não somente no palco, mas também na leitura, no ato de fazer estas palavras presentes neste momento, aqui. 

about




quantos sites de crítica literária você conhece? agora me diga quantos sites de crítica teatral você já acessou. agora tente lembrar quantas críticas sobre livros de dramaturgia você já leu neles. ok, com certeza a resposta é “não muitas”!

isso não é à toa. cada vez mais a literatura dramática se revela como um filho sem pai e nem mãe. e isso, com certeza, não quer dizer que ela esteja em baixa, que poucas pessoas se interessam por ela ou que a quantidade de escritores dramáticos tem diminuído com o passar dos anos. nada disso!

a questão é que depois da crise em meados do século xviii, a dramaturgia tem encontrado resistência em qualquer tentativa de pertencimento, tanto na linguagem teatral quanto na literária. cada vez mais as produções cênicas vêm buscando uma autonomia da soberania do drama, e também é cada vez menor o espaço cedido aos livros de dramaturgia nas estantes das livrarias – um sintoma disso são as prateleiras de teatro destinadas à dramaturgia juntamente com teorias do teatro e também relatos de montagem.

quando citada, a dramaturgia é sempre apontada como um elemento da encenação. é claro que, quando se lê um texto dramático é imprescindível que se pense no teatro. mas quais são os parâmetros que fazem validar um texto, um escrito como dramaturgia?

alguns acreditam que um texto teatral exista pela ausência de um narrador, no qual os personagens se apresentam e agem através da sua própria fala. outros afirmam que é a capacidade de perceber a palavra enquanto sonoridade vocal que o qualifica. e ainda outros percebem a dramaturgia como algo que prescinda do ator, um texto que revele em si uma ausência que somente se completa na fisicalidade do ator.

questiono isso porque cada vez mais romances, contos, poesias vêm sendo utilizados como material literário para a construção da cena. 

entre aproximações e afastamentos com a tradição, essas questões se desdobram em muitas outras e, certamente, não encontraremos uma única resposta como verdadeira. o que acontece hoje é que cada autor, dramaturgo, ao escrever o seu texto tenta responder essa pergunta, tentando a cada obra, reinventar o conceito de dramaturgia.

a intenção deste blog é justamente tentar apresentar uma parcela de obras brasileiras que se propõem enquanto escrita para a cena e que estão publicadas e acessíveis ao público, independentes de serem encenadas ou não. Apresentando e a discutindo essas obras no papel, o blog pretende incentivar a reflexão e o consumo de dramaturgia, auxiliando, quiçá, no aumento do número de obras de dramaturgos brasileiros nas prateleiras das livrarias.