segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Histórias para serem lidas em voz alta – Gustavo Colombini e João Dias Turchi – por André Felipe




seis dramaturgos






e então foi feito o convite.

em outubro do ano passado os seis dramaturgos foram convidados pelo teatro inominável e tempo festival para participar da mostra-hífen de pesquisa-cena.

lá experimentamos outras formas de críticas, fora dos formatos mais tradicionais. a proposta é que as reverberações da programação podiam catapultar qualquer tipo de escrita, como uma segunda obra gerada de maneira quase instantânea da fruição da obra. aqui estão os textos produzidos durante um mês de programação da mostra http://mostrahifen.com.br/seis.html

com isso, me pareceu extremamente instigante propor aos seis dramaturgos novamente esta experiência, só que agora, a partir de dramaturgia brasileira. com isso experimentamos aqui no blog também outros formatos de crítica, de feedback e de troca de olhares. poesia sendo respondida pela poesia.

a cada mês, um dramaturgo irá escrever sobre alguma outra dramaturgia.






pra iniciar, a crítica do catarinense andré felipe do livro dos paulistas joão dias turchi e gustavo colombini – histórias para serem lidas em voz alta.




Histórias para serem lidas em voz alta




 “Que a mesma chuva sempre cai em lugares diferentes e não dá pra saber se ela ta começando ou acabando” – A Lígia pediu para eu escrever um texto sobre a publicação de Histórias para serem lidas em voz alta do Gustavo e do João. Que ideia, Lígia. Logo eu. Eu que nunca me recupero de um livro que me atravessa e fico mudo. A Lígia me deu uma data limite e eu receio não poder cumprir o combinado. Vou fugir pela tangente. De novo. Na verdade a Lígia me deu uma segunda data limite, porque a primeira eu já não cumpri. Desculpa, Lígia. Eu juro que normalmente não faço isso. É só com você mesmo. Não, não é isso que eu quero dizer. Não é com você, Lígia. É um você mais amplo, entende? Não entende. Ok, eu também não entendo completamente. Mas vamos deixar isso das datas limite de lado, até porque eu venho avançando bem até agora e é possível que eu não te decepcione dessa vez, nunca foi tão possível. Olha só como as palavras estão se formando, uma após a outra, procriando, como tartarugas. Não, quero dizer, como palavras mesmo, letra por letra, como conversa jogada fora. Tudo na ponta dos meus dedos. E é lindo, Lígia. Através das minhas duas mãos, porque são as únicas que eu tenho e acredito que é o bastante, eu projeto essas palavras na tela. Eu posso ser só um, mas eu tenho duas mãos que se fazem companhia. Eu estou falando com você mesmo, que adora falar da dança das mãos. Você mesmo, Lígia. Não você amplo. – Mas isso é particular e não tem razão de se expor assim.  – “Essa é a sua história, essas são as suas pequenas histórias, todos os acontecimentos entre o instante do seu nascimento, ou melhor, o instante em que você ouviu pela primeira vez o seu nome em voz alta, todo esse livro escrito entre horários distintos de um dia ficcional de vinte e seis letras, por quatro mãos resignadas de tempo, por quatro mãos que se cansaram da sua própria história, as suas pequenas histórias projetadas pela interação caligráfica e o receptor que, mesmo em leitura silenciosa, projeta, via imaginação criadora, uma presença que rompe as fronteiras do texto escrito e se projeta, como biografia, no espaço de uma presença viva, devolvendo essa voz, transformada, outra vez, para a palavra escrita” – Histórias para serem lidas em voz alta é a primeira publicação conjunta de Gustavo Colombini e João Dias Turchi, subvencionada pelo prêmio ProAC de Criação Literária 2014 e lançada em março de 2015. Os dramaturgos, que desenvolvem diversas ações interdisciplinares em parceria pelo grupo Cinza de São Paulo, investigam neste livro o ponto intermediário entre a literatura e a dramaturgia, entre a escrita e a leitura em voz alta. O livro é classificado pelos autores como um romance que se desdobra em histórias escritas por um biógrafo que desenvolve uma teoria capaz de construir a biografia de qualquer um. No entanto, ao tratar sobre os limites entre a palavra escrita e falada e arquitetar uma estrutura experimental não linear, o texto ganha contornos que extrapolam os gêneros. – E de repente a escrita se estanca, Lígia. Isso é um fracasso. –





                                                                         – O que eles estão tentando dizer é que a gente nunca sabe onde as coisas começam e onde elas terminam – “A paisagem nunca ta pronta, as montanhas crescem conforme o movimento das nuvens e a natureza pode caminhar e se estender por grandes pedaços do horizonte” – E quando eu digo a gente, eu estou querendo dizer eles, eu, nós, você também. Por que você nunca sabe onde as coisas começam e onde elas vão terminar. Eu, por exemplo, confundo o João e o Gustavo o tempo todo. E por mais que eu acredite reconhecer a escrita de cada um nesse quebra-cabeça que eles armaram juntos, de repente eu enxergo o rosto de um no outro. Talvez esse seja o rosto daquele biógrafo. E eu me identifico nesse rosto cansado, porque eu também estou cansado, eu sempre estou cansado e olho para ele como um espelho. Eu começo a desconfiar que Gustavo Colombini é o pseudônimo do João e João Dias Turchi é o pseudônimo do Gustavo e acabo misturando a voz dos dois, mesmo que a voz de um seja oposta a do outro; uma grave e sem vírgulas, a outra mais aguda e pontuada. Mas não importa quem escreve porque sou eu quem lê agora. Então fiquem em silêncio e me escutem. Todos esses autores, todos esses biógrafos e todos esses biografados têm a minha voz cansada. A minha voz parece calçar bem essas palavras e assim eu encontro a minha presença pastosa nessas histórias, eu estou lá. E quando eu digo eu, estou querendo dizer nós, eles, vocês, você. A sua voz é extensão da escrita, mas também é extensão do corpo e esse é o primeiro passo para que você comece a se confundir com outras pessoas, mas também com outros tempos e outros lugares – “Talvez se eu tivesse continuado a me confundir com o que me rodeava, talvez assim eu pudesse viver de um jeito mais intenso, tendo vários nomes e formas e cheiros e cores e sons. Eu poderia ser o escuro do meu quarto, a barra de ferro me separando do chão, o chão e a parte dele que eu não consigo ver e, por que não, também meu nome, mas não só ele”O texto teatral pressupõe uma transformação, da superfície plana do papel para a materialidade da cena. O corpo, a voz, a ação, o espaço, o tempo. Ao propor um romance que convoca a oralidade, Colombini e Turchi provocam a escrita literária, ativando diferentes possibilidades de leitura e recepção do texto, trazidas de suas experiências com a escrita e a cena teatral. Trabalham, portanto, sobre os limites dos gêneros e a expansão do texto e das palavras. – Mas Lígia, a escrita também vem de algum lugar, do corpo, da voz, da ação, do espaço, do tempo. Sofrendo para acabar esse texto na data limite, eu percebo de forma mais clara; eu ando de lá para cá, sinto calor, abro a janela, respiro com o meu pulmão cansado, falo comigo mesmo, revejo outros textos, checo o e-mail, abro o livro dos meninos uma e outra vez, te mando uma mensagem de áudio, passeio os dedos no teclado e só então eu escrevo um parágrafo, quando muito, para depois voltar a me mover. E agora eu entendo porque você também tem insistido nessa história da dança das mãos. O texto então é a sobra de tudo isso. E não é suficiente. Tem algo que eu disse que você não escutou e por isso tem algo entre nós que não entendemos. Mas ao mesmo tempo é lindo, Lígia, porque eu me sinto parte dessa construção e ela é um canteiro de obras em total abandono – “Pegue esse livro. Arranque todas as folhas. Cole-as numa parede em branco. Cada página é uma história. Completa. As páginas juntas podem formar uma nova história. Ou várias outras histórias. São sobre mim. E sobre você. E sobre todo mundo que já passou em nossa vida” – E um novo dia começa ou termina, Lígia – como forma de ativar o livro. Os autores criaram um dispositivo em que os atores leem os textos de forma aleatória, atravessados por diferentes elementos de espaço, luz e som, criando uma nova experiência a cada apresentação. Mais uma vez, cruzam-se dramaturgia e literatura, encontrando nos limites de uma a – Eu prometi falar mais, prometi escrever e acabei no limite entre dizer e não dizer. Eu levei a pergunta comigo, Lígia, eu a engoli. E quando eu digo eu, você já sabe. Eu não disse nada, fiquei em silêncio, não saí do lugar. Eu estava só começando o meu projeto. É possível isso, Lígia? Não sair do lugar. Deixar os gestos congelados, como uma estátua, o tempo suspenso. Eu só sei que, quando se diz, é impossível não dizer nada, cria-se uma narrativa de todo jeito. Ou várias. Não, você está repetindo as mesmas coisas. Desculpa. Eles estão se confundindo com um livro, porque não sabem onde um começa e onde o outro termina. Logo eles. Aí eu me lembro dos homens-livro daquele filme. Mas a essa altura isso já não importa. Eu lembro de um conto daquele argentino afrancesado. Mas isso também não importa, Lígia. Eu estou dando voltas. Por escrito não funciona mais. Eu falei. Estou te falando, mas você não me ouve. Nós estávamos cansados demais e não sairemos do lugar; esse é o seu projeto. Só sobrou fazer uma remontagem fracassada e pretender que com você também era assim, acabava com silêncio ou talvez nem isso –


sexta-feira, 28 de agosto de 2015

evoé dramaturgia!!!



depois de mais de um ano de afastamento, me dedicando a dois trabalhos que me tomaram todo tempo do mundo – curadoria dos espaços teatrais do sesi são paulo e o doutorado na usp -, retomo o blog com mais críticas e reflexões sobre a publicação de dramaturgia no brasil.

trabalhando com mais parceiros e em outros formatos que não só a crítica de livros publicados, inicio essa retomada do blog com um texto que escrevi para o projeto janela de dramaturgia e li na mesa “como você mostra?” na abertura da sua terceira edição. reescrevi o texto e inseri algumas outras observações que acho importante para a reflexão sobre dramaturgia no brasil.

na mesa comigo estavam os queridíssimos assis benevenuto e diones camargo, sob mediação da luciana romagnolli.

vamos a ele?!


por que publicar?





ao ser convidada para responder à provocação "como você mostra?" achei antes mais importante e interessante para o debate dar um passo para trás e mudar a pergunta que me foi proposta: no lugar de como publicar, penso ser interessante aproveitar esse momento para questionar: “por que publicar?”

essa pergunta é o resultado de um processo no qual a linguagem dramatúrgica vem lutando contra: a falta de espaço e reconhecimento da dramaturgia como produto literário ainda é dominante no brasil: a maior feira literária do nosso país, em sua 13a edição, nunca abriu as portas para discutir mais a fundo o gênero e tampouco o prêmio jabuti contempla uma categoria para dramaturgia.

bem, mas menos do que discutir o mercado literário para dramaturgia no brasil, acho importante discutir a mentalidade dramatúrgica de nosso movimento artístico. duas experiências podem nos ajudar a pensar:

numa oficina ministrada pelo dramaturgo luis alberto de abreu ele nos contou sobre uma experiência com o teatro vertigem, no qual, após finalizar o texto no processo colaborativo foi questionado sobre a possibilidade de exclusão de uma cena, já que o cenário proposto pelo cenógrafo deixaria o espetáculo redundante caso ele mantivesse o texto original. a cena foi cortada e o cenário mantido. porém na publicação da obra, o dramaturgo decidiu manter a cena.

podemos citar também a publicação dos textos da mineira grace passô que inseriu rubricas instaurando não só a sugestão de ações cênicas, como o contexto poético das cenas. sem a pretensão de dar contar da retratação da linguagem teatral, a dramaturga investiu outras criações poéticas para que a experiência de leitura não se limitasse à descrição das ações dos atores.

por outro lado, ainda encontramos publicações que iniciam com “este texto foi montado em tal teatro com tal elenco". este paratexto parece desimportante, mas ele revela ainda uma preocupação com a memória do teatro a divulgação daquela experiência de encenação. essa preocupação ainda tão existente ainda é o resquício de um teatro dramático que teve sua história contada pelos textos que perduraram, já que o teatro é uma arte tão efêmera cuja experiência é impossível de ser apreendida. restou ao teatro manter na história da dramaturgia, a história da cena.

portanto, podemos identificar que ainda existe um pensamento que acredita que a publicação de dramaturgia é uma maneira de manter a memória do espetáculo, mesmo que hoje já possamos falar de novas possibilidades que se debruçam não no registro do teatro, mas no desenvolvimento de novas linguagens que, de alguma maneira, prestam esse serviço de memória ao mesmo tempo em que criam uma linguagem própria, como é o caso do teatro filmado, pesquisado principalmente pela alemã beatrice picon vallin.

seguindo neste raciocínio, qualquer dramaturgo no início de sua produção já escutou o conselho de que é mais importante que o seu texto seja encenado do que publicado. esse tipo de mentalidade parece ainda estar muito presente no contexto da dramaturgia no brasil. mas vale o questionamento: isso é necessariamente uma regra?

por outro lado, escritores que não estão ambientados às discussões teatrais da contemporaneidade, quando se aventuram a linguagem dramatúrgica ainda estão extremamente vinculados ao formato dramático, exaltando ainda os aspectos intersubjetivos dos personagens e o desenvolvimento do enredo. alguns exemplos é o homem como invenção de si mesmo do ferreira gullar ou ainda paisagem em campos de jordão do marcelo mirisola e nilo oliveira.

finalizando minha interferência no bate papo, sugiro que pensemos sobre algumas provocações, para construirmos a partir daí o nosso diálogo:

a mídia no caso da dramaturgia – teatro ou livro – pode desenrolar numa discussão sobre a linguagem ou sobre o gênero dramatúrgico? como isso interfere no entendimento da linguagem se considerarmos que as fronteiras entre os gêneros (dramático, lírico e épico) estão cada vez mais borrados?

a publicação de dramaturgia ainda hoje deve manter a sua função de memória do teatro?

há diferenças entre o espectador de dramaturgia contemporânea e o leitor de dramaturgia contemporânea?

é saudável para a dramaturgia tentar retomar um espaço literário do qual se esforçou tanto para se desvencilhar?

a cena valida ou qualifica a dramaturgia?