segunda-feira, 11 de março de 2013

trabalho de amores quase perdidos - pedro brício




o texto trabalho de amores quase perdidos escrito pelo dramaturgo carioca pedro brício faz parte da coleção dramaturgias da editora cobogó.

a peça trata basicamente dos diversos contratempos causados pelos relacionamentos amorosos. são quatro atores que, invadindo o espaço de ficção do outro, constroem uma narrativa fragmentada e desconstruída. três atores tem papéis mais bem delineados e se dividem em contar, narrar a história e em apresentar, vivificar através das cenas, as situações vividas por seus personagens. uma quarta atriz é responsável por dar suporte a toda esta estrutura. mais a frente explicaremos melhor sua função.

numa relação direta com o filme francês jules e jim do diretor françois truffaut, que é citado várias vezes, o texto apresenta as aventuras de dois amigos que se apaixonam pela mesma garota. com um toque de fofura e comédia, o texto se revela num diálogo extremamente excitante com as características do cinema indie americano, principalmente nos diálogos rápidos e na apresentação de situações imprevisíveis dentro de um universo cotidiano.

a dramaturgia apresenta algumas estratégias da escrita literária clássica. em um dos textos do filósofo hegel ele indica que a característica principal do gênero épico é a conjunção de uma trama principal aliada a várias tramas adjacentes, sendo o escritor responsável por dar conta de todas elas apresentando-as de maneira consistente e encerrando-as com igual contundência. para isso, hegel exemplifica com a epopéia odisséia, que não por acaso é referenciada em trabalhos de amores quase perdidos ainda no inicio do livro: “mesmo sendo o narrador, eu não vou conseguir falar tudo o que deveria ser dito. não dos fatos, mas o que aconteceu dentro... a epopéia sentimental. é como na odisséia: quem viajou mais, o ulisses, navegando, ou a penélope, esperando?...”

essa relação com a epopéia se justifica nas diversas tramas adjacentes que permeiam a trama principal: a situação amorosa de três amigos. a quarta personagem, que citamos anteriormente, é responsável por incorporar as figuras que interferem na vida desses três amigos. ela é apresentada basicamente como um coringa, que permeia todo o espetáculo como um símbolo máximo dessas tramas paralelas, dessas experiências efêmeras e fortes que aparecem na vidas dos personagens, ao mesmo tempo que dá o tom épico e aventureiro à dramaturgia de pedro brício.

a estrutura fragmentada e que nos impulsiona num ritmo de leitura mais rápida, não é de fácil apreensão. principalmente no início do texto até grande parte do primeiro ato, o leitor tenta achar o fio condutor da fábula. sim, por mais fragmentada e desconstruída que seja a narrativa, no final das contas o que o autor deseja é contar a história deste triângulo afetivo/amoroso e suas peripécias. o leitor se perde, não compreende a finalidade das estratégias de entrada e saída nos personagem, há uma falta de convenções no texto que, num olhar posterior à leitura, tende a se resolver na encenação.



o fato de uma das atrizes representar vários personagens e também o fato dos outros atores serem narradores e personagens ao mesmo tempo, somado à desvios de condutas na troca dos personagens e à encarnação instantânea e fugaz de personagens adjacentes, faz com que a obra se torne confusa e um tanto cansativa, pois há um esforço grande do leitor, até que se perceba o jogo que se estabelece dentro da narrativa, que demora muito pra ser apresentada com solidez.

sobre a falta de objetividade na apresentação dos personagens ainda existe uma indireta do autor: “eu pensei em tirar os nomes / por quê? / não sei, eu queria que eles não tivessem mais nomes / você acha isso original? / poderia ser [aponta mariana] x, [aponta ele mesmo] y, [aponta joão] y 2, [ aponta branca] z. como uma equação matemática. ou então ela, ele, aquele, aquela.”. esse trecho indica com certa ironia no tratamento dos personagens, já que ele são indicados por nomes, em contraposição a uma identidade a princípio fragmentada, mas que se revela, a posteriori, tão psicológica quanto num drama tradicional.

o ponto de discussão nesta reflexão se dá num confronto sobre a composição da obra e o que se quer transmitir com ela. me parece que a fragmentação dos acontecimentos e a permanente entrada e saída nos personagens, alternando com os atores/narradores se mostram como uma forma um pouco desligada da trama, já que, afinal das contas, a fábula, as situações que decorrem desses desencontros amorosos se mostram como a prioridade da obra. a totalidade da trama ainda é o foco.

esse descolamento que encontramos na obra, entre a fábula unívoca e sua estrutura múltipla, deve ser menor quando de sua representação no palco, dada a corporificação dos personagens múltiplos por uma só imagem, a do ator. a falta dessa imagem que una as diversas formas, figuras, papéis, personagens é a tônica para que a obra se apresente na leitura de maneira tão confusa e desconectada.

morgue story – sangue baiacu e quadrinhos – paulo biscaia filho




palcos de sangue é nome do livro do diretor, dramaturgo e cineasta paulo biscaia filho, que contém três obras: morgue story, graphic e nervo craniano zero. publicado pela editora estronho, o livro tem assinatura da vigor mortis vídeo, stage & words, a produtora/companhia de teatro idealizada e dirigida por paulo. para esta reflexão escolhemos o primeiro texto, morgue story – sangue baiacu e quadrinhos.

a proposta de paulo biscaia me parece ser singular no brasil e quiçá no mundo. num interesse em retomar aspectos do francês thêátre du grand guignol surgido no fim do século xix, o horror e a fantástico são reavidos na obra de biscaia de maneira atualizada. somado a recursos tecnológicos, no uso da imagem e à linguagem pop das histórias em quadrinhos, as obras ganham em fôlego e proporcionam uma leitura clara, objetiva e ao mesmo tempo imprevisível.

nesse universo fantástico, morgue story apresenta três personagens que se encontram num necrotério e envolto à confusões, mal-entendidos e más intenções acerca da doença da catalepsia - quando o sujeito morre, ou nos parece morto, por alguns instantes - essas figuras se relacionam e nos apresentam suas neuroses e suas peculiaridades.

biscaia apresenta o livro já declarando não considerar os textos obras dramatúrgicas e sim “registros escritos da montagem”. sem levantar a questão de que os parâmetros que delineiam os gêneros, por tempos não podem mais serem considerados nas obras da atualidade, a obra de biscaia nos parece sim um registro, devido a sua objetividade e direcionamento na linguagem criada pelo diretor/escritor. as referências visuais e as soluções cênicas dadas às situações do texto, como a inserção de outros personagens em vídeos projetados que dialogam com os atores em cena, nos parecem de fato fazer parte daquele universo criado na ficção. a agilidade das relações entre os personagens somada à linha de comunicação direta e objetiva características da linguagem cinematográfica dão às indicações da montagem elo e coerência nas indicações objetivas e universo estético.



portanto, por mais que o diretor considere o texto um registro, ele não perde fruição na criação de uma ficção interessante e envolvente quando da sua leitura. a objetividade das indicações cênicas, as rubricas, não nos afasta do texto e tampouco delimita nosso poder de imaginação e apreensão da escritura. numa estrutura dramática quase convencional – retirando os cortes temporais e a inserção, poucas, de monólogos narrativos – o interesse do texto se dá no desenrolar da história e na construção dos personagens, rápidos, jovens e impulsivos. de maneira instigante o texto nos impulsiona a imaginar o universo dos hq`s e dos filmes de terror como base para a construção não só visual mas também atmosférica e da áurea de todo espetáculo.

além da imprevisibilidade no desenvolvimento da narrativa ficcional, na inserção da linguagem dos quadrinhos, e da engenhosidade tecnológica proposta na solução do texto, a dramaturgia de paulo biscaia filho é instigante por se mostrar singular na utilização do gênero horror pelo teatro e pela  atualização inventiva e consistente que o gênero, desde os tempos de thêátre du grand guignol, requer de seus autores para a renovação estética e reconquista do público.