segunda-feira, 27 de maio de 2013

revista jandique




no último sábado estive em curitiba para o lançamento da revista jandique #2. a convite do editor e amigo otávio linhares, escrevi a carta opinião “dramaturgia é literatura”.
segue trechinho do texto:

dramaturgia é literatura.

“a afirmação parece um tanto óbvia, mas na prática não se mostra tanto assim. a falta de espaço em discussões literárias, a ausência de representantes em eventos onde se discute a palavra, a falta de incentivo à publicação de dramaturgia contemporânea e tantas outras faltas nos fazem ainda hoje proferir o bordão e levantar essa bandeira.

[...]

sabemos bem a importância da dramaturgia na constituição e no pensamento acerca da língua de um povo, patrimônio instituído como o mais importante numa nação. shakespeare é considerado o inventor na língua inglesa, por criar neologismos e novas utilizações para palavras conhecidas, além de suas obras representarem a disseminação da língua auxiliando em sua unificação. nelson rodrigues foi responsável por inserir na nossa literatura dramática o português brasileiro, fora dos coloquialismos do português lusitano, a fala no texto teatral transformou-se na fala das ruas, e a formalidade do português arcaico deixou de ser utilizado na escrita teatral a partir de suas páginas.

a dramaturgia vem há tempos retomando seu lugar de invenção. sufocada pelas ideologias sociais e por sua conveniência na formação educacional, o texto teatral contemporâneo  vem se retirando da sua utilidade objetiva e coloca-se como necessária a si própria: a reinvenção da escrita e da linguagem.”



quem quiser ler na íntegra é só adquirir a revista através do link: www.facebook.com/revistajandique

janela de dramaturgia - belo horizonte



primeiro encontro





qual a diferença entre ler uma peça e ouvir uma peça? bem, este me parece o desafio proposto pela equipe do janela de dramaturgia quando do convite para reflexões acerca dos textos no papel.

sem tentar, de maneira alguma, limitar ou direcionar o entendimento sobre o gênero dramático – o que já não faz menor sentido em tempo de experienciações tão limiares e fronteiriças – o interesse desse diálogo entre visões acerca da palavra ouvida e da palavra escrita, faz do janela de dramaturgia um dos poucos espaços no brasil que se abre para essa reflexão.

literatura ou teatro?

como se servir das duas linguagens para que a dramaturgia seja novamente alçada a um papel importante na reflexão estética e sociológica da arte?

o lugar – virtual – está posto, as reflexões tornadas públicas. agora fica o convite para a troca, num espaço franco e ao mesmo tempo desnudo, onde somente a arte pode ganhar.

a todos nós, coragem!

evoé janela de dramaturgia.

vida longa.



anã marrom – marcos coletta




“anã marrom” é um texto curto do dramaturgo marcos coletta. são dois atores, um deles se reveza entre todos as personagens adjacentes à figura de estela, interpretada sempre pela mesma atriz. o que nos chama a atenção quando da leitura do texto é a indefinição de quem está narrando a história, uma voz que surge no texto sem nenhuma indicação de enunciador. esta proposição nos faz perceber uma abertura do autor, em direção a um texto que se abre para as necessidades/possibilidades da encenação.

a história se dá no acompanhar do percurso de estela. essa trajetória se dá com saltos temporais, flashbacks e cortes, relatando momentos da vida dessa personagem, sua infância, passando pela adolescência e etapa adulta, não necessariamente nesta ordem. a narração trabalha com esses saltos de maneira rápida e orgânica: “dança do cosmos. bar. carro. quarto. banheiro. cozinha. porta. um aceno ligeiro. um telefonema.”, o que dá agilidade e ritmo à história. neste percurso do herói estela, outro herói entrecruza a ficção, o filho miguel, ressaltando a idéia de que “eu era dois. eu era outro. à mercê dos desejos caprichosos e onipotentes deste estranho”. entre frustrações e realizações, estela vê sua vida se desenvolver de maneira adjacente à de miguel, revelando as necessidades e intenções do filho criado longe do pai. além de mãe, encontramos no percurso de estela a transposição para papéis de filha e irmã, revelando o universo particular e familiar da personagem.

repleto de metáfora e lirismo, a história é construída fazendo paralelo com alguns fenômenos astrológicos e fatos históricos científicos, resgatando, por exemplo, a história da cachorra laika, enviada para o espaço numa experiência russa. entre outros paralelos, o texto nos faz lembrar de outras obras que recorrem à ciência para construir suas narrativas, como no romance “alice no país das maravilhas” de lewis carroll ou ainda a obra do norte-americano david foster wallace. porém um importante paralelo se faz com o texto “universos” do dramaturgo inglês nike payne. em “universos” acompanhamos um casal em acontecimentos altamente cotidianos, porém, o que nos chama atenção é a estrutura do texto que se compõe de acordo com a teoria da física quântica, além de fazer alusões diretas aos acontecimentos das personagens com as hipóteses levantadas pelos estudos científicos.

no caso de “universos”, as menções se dão tanto nas falas das personagens, quanto na estrutura lingüística e na composição das cenas. em “anã marrom” as referências aos fatos e teorias científicas são colocados somente nas falas das personagens de modo a fazer metáfora com o momento vivenciado por eles. um exemplo disso é o próprio titulo do texto que ganha sentido na explicação da mãe de que “anã marrom” é um projeto de estrela que deu errado, uma estrela fracassada – uma metáfora da própria personagem estela, e seus sonhos todos afogados pela condição maternal.

porém, enquanto que em “universos” o mote da física quântica elabora um outro modo de perceber as relações, a estrutura narrativa do espetáculo e portanto, o próprio teatro; em “anã marrom” nos parece que as reflexões científicas apontam para uma potencialidade estrutural e lingüística mas que o texto ainda não alcança.

em “anã marrom” percebemos através do texto um jogo cênico tradicional e estabelecido de maneira muito clara, sem atravessamentos, nos encaminhando a uma vivência passiva da vida dessas personagens, estando submersos nessa ficcionalidade, que em seu recorte seguro e de fácil fruição, se apresenta bem elaborada e com suas metáforas e singelezas na medida certa.

o que falta no texto são alguns tipos de questionamento: onde eu tenciono as estruturas já digeridas do teatro? como o meu material pode colaborar para um deslocamento das certezas dos espectadores? como a linguagem pode agir de maneira a modificar e verticalizar o material apresentado? perguntas extremamente pertinentes para que o texto se coloque mais num limiar, num espaço fronteiriço entre comunicar e experienciar.



conto anônimo – sara pinheiro




“conto anônimo” da dramaturga sara pinheiro foi escrito para dois atores e se passa no interior de um apartamento, propondo que espectadores e atores dividam o mesmo espaço, que ao mesmo tempo se revela real e cênico.

o texto é construído pelo que a autora chama de momentos e interlúdios, que se revezam. os momentos acontecem no banheiro, quarto e cozinha enquanto os interlúdios ocorrem sempre na sala de estar do casal. essa separação revela também um contato direto entre forma e conteúdo. nos momentos, que são vividos nos espaços privados da casa, nos deparamos com cenas que revelam a intimidade daquele casal, uma mulher falante e um homem que ouve, silencioso e indiferente. já os interlúdios, que são revelados a partir do áudio de uma televisão sem imagens e solitária na sala de estar, exprimem num impulso de relato, divagações sobre a situação daquele casal, que pode ser vista tanto como um desdobramentos dos pensamentos daquele homem, como um adendo às elucubrações constantes da mulher. neste espaço público da sala, as informações reveladas por este áudio, numa voz feminina, nem sempre são objetivas, mas sempre nos revelam um outro olhar sobre aquela relação, sobre aquele encontro diário.

neste espaço entre a revelação do particular e uma suposta reflexão/declaração pública da situação do casal, signos como o destroçar de um frango e o congelar de carne surgem das falas dessa mulher que conduz toda a situação numa verborragia provocada, revelando o vazio de sua existência, num contraponto ao silêncio permanente do homem que nos revela igual vácuo. o mito de sísifo, o homem constante, é um intertexto presente na obra.

a mulher tenta livrar-se da situação de inércia que indica o seu momento atual. numa falsa tentativa – que se revela num constante falar inativo – a fixação da morte como, ora uma condição de constância ora uma possibilidade de quebra da estabilidade, a verdade do texto nos é revelada: a constância e o movimento coabitam o mesmo espaço.

essa questão nos é revelada em diversos pensamentos e fatos dicotômicos: o corpo (aqui também numa metáfora com a carne), ao mesmo tempo que revela um movimento em direção ao apodrecimento, à morte, revela a sua condição constante de ser humano estável e tedioso; a casa que ao mesmo tempo é o símbolo permanente de proteção maternal, contêm em si o câncer desta relação amorosa que se consome; o espectador, que adentra à casa, como que tentando entender, enxergar a condição desse casal, também povoa este mesmo espaço, também faz parte – fisicamente – deste ambiente ficcional e privado; o desejo de conservação de si própria em contraponto ao desejo de mudança na possibilidade de morte do outro; o abraço que evolui para um empurrão, o amor que evolui para o morte. 

o homem acompanha todas essas divagações, mas não reage, nada o tira da rotina e das ações enfadonhas do cotidiano.

a ponta de expectativa se encontra no movimento nove, quando a mulher relembra um fato da infância, quando um garoto numa evolução de um abraço dado, a empurra, gerando um corte que quase a mata. a omissão da culpa, a não acusação do amigo, o ato de constância daquela menina nos instiga a perceber aquele empurrão como um ato de amor, e a compreender que a morte, que se mostrou próxima naquele episódio, foi gerado por um movimento, por uma quebra da imobilidade. nem na ação e nem na passividade, nada de fato se concretizou: nem a morte, nem o amor.

porém, após a construção de toda essas reflexões incitantes sobre a impossibilidade do movimento e igualmente da constância, a autora se entrega ao óbvio, e mantém as personagens da mesma maneira que os conhecemos: imóveis. esse fato nos faz retomar o clássico “esperando godot” de samuel beckett, no qual duas personagens aguardam a chegada de godot (god!) em vão, metáfora maior do vazio das relações que desembocam numa imobilidade total. o texto de sara aponta para uma nova/outra reflexão acerca do tédio, mas sucumbe e não avança às já conhecidas fórmulas de retratação da imobilidade, tão repetidas desde as palavras de beckett. 

mais informações sobre o projeto em: www.janeladedramaturgia.wordpress.com