quinta-feira, 13 de março de 2014

edifício london - lucas arantes







editado pela coruja de ribeirão preto na coleção rascunho, a dramaturgia de lucas arantes foi inspirada no caso isabela nardoni, assassinada pelo seu pai e a madrasta em 2008.  ano passado a peça esteve presente nos principais sites de notícias do brasil. o espetáculo produzido pela companhia os satyros foi proibido pela justiça paulistana de se apresentar devido a uma ação da mãe, ana carolina oliveira. pouco mais tarde o livro contendo a peça também foi recolhido das livrarias.

dias antes da proibição da venda do livro, quando a peça já havia sido cancelada, lucas me enviou um exemplar. agora, depois de quase um ano, me parece propício relembrar o acontecido, principalmente porque a lei das biografias não autorizadas está sendo debatida e julgada.

mas antes vamos falar um pouco sobre o texto.

estruturalmente o texto apresenta de maneira clara uma influência no formato da tragédia, com algumas adaptações que tentam dar conta das formas da contemporaneidade. o texto é divido em 21 cenas mais um epílogo. são 30 personagens apontados pelo dramaturgo, mas, de fato, a peça se desenvolve entorno de três principais: a menina, o homem, a mulher; e ainda outros três coadjuvantes que auxiliam na construção do enredo: a mãe, o vizinho e o mendigo.

o texto apresenta de maneira rápida a relação de confiança e afeto entre a menina e a mãe, mas também revela algumas imaturidades. o enredo segue dando ênfase maior à relação da menina com o pai e a madrasta, que mantêm entre si uma convivência difícil e entrelaçada de mistérios e incertezas. ao assassinato da menina (os motivos se misturam a um ambiente psicológico muito conturbado) segue uma série de julgamentos e hipóteses de toda a situação, fazendo referência a fatos reais que exaltam toda a confusão que o acontecimento trouxe para a sociedade de então, ainda tão baseada em valores familiares.

abrindo e fechando o texto encontramos o personagem do bufo melancólico, que - com função similar ao coro das tragédias gregas - apresenta o enredo inicial da peça e igualmente o encerra propondo ao leitor algumas reflexões. esta figura parece, desde o início, querer nos colocar diante de um acontecimento tão antigo: o assassinato de um filho pelos próprios pais. evocando dante alighieri, o bufo melancólico evoca: “deixem todas as esperanças”. com isso percebemos que o fim trágico dos enredos teatrais de mais de 2500 anos atrás, medea, por exemplo, aqui também se repete.

uma construção importante a ser ressaltada, é a forma como o autor decidiu designar os personagens. o pai e a madrasta da personagem menina são nomeados como homem e mulher e a designação de pai fica indicada para o pai do homem, neste caso o avô. dessa maneira o autor indica, logo no início que o personagem homem não deve ser identificado como uma figura paterna, o que acontece também com a madrasta, que é designada como mulher.

por outro lado, a figura da mãe aparece poucas vezes no texto, apenas em 03 momentos, fazendo com o que sua interação com aquela situação seja igual ao do personagem vizinho, que também aparece 03 vezes na dramaturgia, não atuando sobre a situação mas apenas acompanhando, quase voyeristicamente. isso nos traz a impressão de que a ideia de família já se apresenta desestruturada antes mesmo do assassinato, fazendo com que esse fato se apresente como uma consequência de um paradigma na formação das famílias na contemporaneidade. onde está a figura do pai? como se relacionar com a figura coadjuvante da mãe na formação dos filhos? o texto apresenta essa situação, mas, propositadamente, não faz nenhum pré-julgamento.

os outros elementos clássicos da tragédia são encontrados na dramaturgia de lucas arantes: a unidade de ação, a coerência dos personagens e principalmente a existência de um conflito que desemboca numa grande tragédia.





porém uma característica salta à ordem trágica: a condução dramática é atravessa por uma forte exploração do intrasubjetivo dos personagens, característica que szondi identifica como uma caminhada em direção aos gêneros lírico e épico. a poeticidade dos personagens é contrastada com as ações e contexto tão ligados à realidade. em vários momentos os personagens parecem avançar num universo muito particular no qual suas escolhas são colocadas à prova e o sentimento de dúvida é exaltado. isso é reforçado principalmente com a aparição do personagem mendigo que, como um oráculo grego, adiciona ao universo do texto ainda mais mistério e subjetividade, aflorando a reflexão e o pensamento que por horas parecem desembocar na loucura dos personagens.

isso nos parece ser um ganho se considerarmos que todo o universo do texto é construído a partir da incerteza das ações: o sono, a bebida, as drogas, o psicológico abalado, a construção proposital de inverdades são a todo momento evocadas de maneira que leitor possa duvidar, desde o início, da realidade dos fatos.

por outro lado, o uso exacerbado do lirismo e de metáforas acaba por tirar a atenção às situações e ações, levando o leitor a se descolar do texto e perder o interesse na fábula. o mergulho descontrolado no universo confuso dos personagens em alguns momentos distancia o leitor da história e coloca essas figuras num lugar de elucubrações desnecessárias e por vezes enfadonha, exagerando no objetivo de obscuridade e incerteza, tão importante para o texto.

ao fim do livro encontramos uma cena exclusivamente construída para dar cabo da repercussão que este acontecimento gerou no nosso país: uma jornalista, um padre, um skinhead e um psicanalista constroem suas versões e visões acerca do caso. o mais coerente? o texto não indica, não se posiciona. o que podemos afirmar é que todos nós fomos bombardeados pela mídia na construção sensacionalista do caso, e esse fato real, lucas aborda muito bem.

é nesse sentido que a arte se apropria do caso e opera no intuito de renovar o tema e retomá-lo de maneira a dar ao leitor a possibilidade de reconstruir o acontecimento à sua própria maneira, direcionando que, conforme o próprio texto: “quando o jornal não dá conta de suplantar o mistério, de esclarecer os motivos, de responder as perguntas de um acontecimento, a arte tenta cumprir o seu papel de tentar eternizar o enigma. é sempre uma mesma historia. lida ou destruída de diferentes formas”.

adentrando mais a fundo nas questões acerca da censura da peça e do livro e também na discussão sobre as biografias não autorizadas, podemos acreditar que a forma do espetáculo está intrinsecamente ligada ao conteúdo e (por que não?) ao objetivo do autor ao retomar este acontecimento.

enfrentando essa questão, nos perguntamos: qual o sentido de recorrer ao formato da tragédia na atualidade? em outros casos, de certa maneira, responderíamos que não há justificativa e que hoje os temas não mais se adequam a essa estrutura.

porém, se considerarmos que a tragédia grega operava no sentido de, dentro de uma imersão no universo ficcional do espetáculo, purgar e purificar os sentimentos de seus espectadores, o texto escrito por lucas acerca do caso isabela nardoni ainda hoje deve se direcionar no mesmo sentido em relação aos seus espectadores.

podemos genericamente indicar a catarse grega como a possibilidade de purgar e purificar os sentimentos e renovar a sociedade. é a maneira de não se esquecer de nossas próprias escuridões e de, através do acontecimento teatral, salvar a sociedade de suas próprias mazelas.

ainda hoje a montagem da companhia satyros continua censurada, assim como o livro. a discussão acerca das biografias não autorizadas muito vem a calhar ao teatro. como não tratar do homem sem se apropriar de suas inverdades, de suas incertezas e suas invenções?

as fronteiras entre a realidade e a ficção se fundem, desde o começo.


não que esta obra se trate de uma biografia, pelo contrário. mas me parece que toda a discussão que colocou a literatura na lista de temas mais importantes no brasil acerca da legitimação ou não das biografias não autorizadas, tem eco no que aconteceu, está acontecendo, com a obra de lucas arantes e da companhia os satyros. a falsa necessidade de preservação da privacidade no caso da menina isabela (quer invasão maior do que a feita pela mídia durante tantos meses?) parece emburrecer ainda mais a sociedade brasileira. apresentar ao público uma obra que recria um fato realístico coloca em cheque o bombardeio da mídia e a posição letárgica de seus espectadores. entre gregos e contemporâneos, a arte no brasil parece perder muito caso as pequenices do ego e da vida privada tomem conta de projetos e propostas da ordem do coletivo, do público.