primeiro encontro
qual a diferença entre ler uma peça e ouvir uma peça? bem, este me
parece o desafio proposto pela equipe do janela
de dramaturgia quando do convite para reflexões acerca dos textos no papel.
sem tentar, de maneira alguma, limitar ou direcionar o entendimento
sobre o gênero dramático – o que já não faz menor sentido em tempo de
experienciações tão limiares e fronteiriças – o interesse desse diálogo entre
visões acerca da palavra ouvida e da palavra escrita, faz do janela de dramaturgia um dos poucos
espaços no brasil que se abre para essa reflexão.
literatura ou teatro?
como se servir das duas linguagens para que a dramaturgia seja
novamente alçada a um papel importante na reflexão estética e sociológica da
arte?
o lugar – virtual – está posto, as reflexões tornadas públicas. agora
fica o convite para a troca, num espaço franco e ao mesmo tempo desnudo, onde
somente a arte pode ganhar.
a todos nós, coragem!
evoé janela de dramaturgia.
vida longa.
anã marrom – marcos
coletta
“anã marrom” é um texto curto do dramaturgo marcos coletta. são dois
atores, um deles se reveza entre todos as personagens adjacentes à figura de
estela, interpretada sempre pela mesma atriz. o que nos chama a atenção quando
da leitura do texto é a indefinição de quem está narrando a história, uma voz
que surge no texto sem nenhuma indicação de enunciador. esta proposição nos faz
perceber uma abertura do autor, em direção a um texto que se abre para as
necessidades/possibilidades da encenação.
a história se dá no acompanhar do percurso de estela. essa trajetória
se dá com saltos temporais, flashbacks e cortes, relatando momentos da vida
dessa personagem, sua infância, passando pela adolescência e etapa adulta, não
necessariamente nesta ordem. a narração trabalha com esses saltos de maneira
rápida e orgânica: “dança do cosmos. bar. carro. quarto. banheiro. cozinha.
porta. um aceno ligeiro. um telefonema.”, o que dá agilidade e ritmo à
história. neste percurso do herói estela, outro herói entrecruza a ficção, o
filho miguel, ressaltando a idéia de que “eu era dois. eu era outro. à mercê
dos desejos caprichosos e onipotentes deste estranho”. entre frustrações e
realizações, estela vê sua vida se desenvolver de maneira adjacente à de
miguel, revelando as necessidades e intenções do filho criado longe do pai.
além de mãe, encontramos no percurso de estela a transposição para papéis de
filha e irmã, revelando o universo particular e familiar da personagem.
repleto de metáfora e lirismo, a história é construída fazendo paralelo
com alguns fenômenos astrológicos e fatos históricos científicos, resgatando,
por exemplo, a história da cachorra laika, enviada para o espaço numa
experiência russa. entre outros paralelos, o texto nos faz lembrar de outras
obras que recorrem à ciência para construir suas
narrativas, como no romance “alice no país das maravilhas” de lewis carroll ou
ainda a obra do norte-americano david foster wallace. porém um importante
paralelo se faz com o texto “universos” do dramaturgo inglês nike payne. em “universos”
acompanhamos um casal em acontecimentos altamente cotidianos, porém, o que nos
chama atenção é a estrutura do texto que se compõe de acordo com a teoria da
física quântica, além de fazer alusões diretas aos acontecimentos das
personagens com as hipóteses levantadas pelos estudos científicos.
no caso de “universos”, as menções se dão tanto nas falas
das personagens, quanto na estrutura lingüística e na composição das cenas. em
“anã marrom” as referências aos fatos e teorias científicas são colocados
somente nas falas das personagens de modo a fazer metáfora com o momento
vivenciado por eles. um exemplo disso é o próprio titulo do texto que ganha
sentido na explicação da mãe de que “anã marrom” é um projeto de estrela que
deu errado, uma estrela fracassada – uma metáfora da própria personagem estela,
e seus sonhos todos afogados pela condição maternal.
porém, enquanto que em “universos” o mote da física
quântica elabora um outro modo de perceber as relações, a estrutura narrativa
do espetáculo e portanto, o próprio teatro; em “anã marrom” nos parece que as
reflexões científicas apontam para uma potencialidade estrutural e lingüística
mas que o texto ainda não alcança.
em “anã marrom” percebemos através do texto um jogo cênico tradicional
e estabelecido de maneira muito clara, sem atravessamentos, nos encaminhando a
uma vivência passiva da vida dessas personagens, estando submersos nessa
ficcionalidade, que em seu recorte seguro e de fácil fruição, se apresenta bem
elaborada e com suas metáforas e singelezas na medida certa.
o que falta no texto são alguns tipos de questionamento: onde eu
tenciono as estruturas já digeridas do teatro? como o meu material pode
colaborar para um deslocamento das certezas dos espectadores? como a linguagem
pode agir de maneira a modificar e verticalizar o material apresentado?
perguntas extremamente pertinentes para que o texto se coloque mais num limiar,
num espaço fronteiriço entre comunicar e experienciar.
conto anônimo – sara pinheiro
“conto anônimo” da dramaturga sara pinheiro foi escrito para dois
atores e se passa no interior de um apartamento, propondo que espectadores e
atores dividam o mesmo espaço, que ao mesmo tempo se revela real e cênico.
o texto é construído pelo que a autora chama de momentos e interlúdios,
que se revezam. os momentos acontecem no banheiro, quarto e cozinha enquanto os
interlúdios ocorrem sempre na sala de estar do casal. essa separação revela
também um contato direto entre forma e conteúdo. nos momentos, que são vividos
nos espaços privados da casa, nos deparamos com cenas que revelam a intimidade
daquele casal, uma mulher falante e um homem que ouve, silencioso e
indiferente. já os interlúdios, que são revelados a partir do áudio de uma
televisão sem imagens e solitária na sala de estar, exprimem num impulso de
relato, divagações sobre a situação daquele casal, que pode ser vista tanto
como um desdobramentos dos pensamentos daquele homem, como um adendo às
elucubrações constantes da mulher. neste espaço público da sala, as informações
reveladas por este áudio, numa voz feminina, nem sempre são objetivas, mas
sempre nos revelam um outro olhar sobre aquela relação, sobre aquele encontro
diário.
neste espaço entre a revelação do particular e uma suposta
reflexão/declaração pública da situação do casal, signos como o destroçar de um
frango e o congelar de carne surgem das falas dessa mulher que conduz toda a
situação numa verborragia provocada, revelando o vazio de sua existência, num
contraponto ao silêncio permanente do homem que nos revela igual vácuo. o mito
de sísifo, o homem constante, é um intertexto presente na obra.
a mulher tenta livrar-se da situação de inércia que indica o seu
momento atual. numa falsa tentativa – que se revela num constante falar inativo
– a fixação da morte como, ora uma condição de constância ora uma possibilidade
de quebra da estabilidade, a verdade do texto nos é revelada: a constância e o
movimento coabitam o mesmo espaço.
essa questão nos é revelada em diversos pensamentos e fatos
dicotômicos: o corpo (aqui também numa metáfora com a carne), ao mesmo tempo
que revela um movimento em direção ao apodrecimento, à morte, revela a sua
condição constante de ser humano estável e tedioso; a casa que ao mesmo tempo é
o símbolo permanente de proteção maternal, contêm em si o câncer desta relação
amorosa que se consome; o espectador, que adentra à casa, como que tentando
entender, enxergar a condição desse casal, também povoa este mesmo espaço,
também faz parte – fisicamente – deste ambiente ficcional e privado; o desejo
de conservação de si própria em contraponto ao desejo de mudança na
possibilidade de morte do outro; o abraço que evolui para um empurrão, o amor
que evolui para o morte.
o homem acompanha todas essas divagações, mas não reage, nada o tira da
rotina e das ações enfadonhas do cotidiano.
a ponta de expectativa se encontra no movimento nove, quando a mulher
relembra um fato da infância, quando um garoto numa evolução de um abraço dado,
a empurra, gerando um corte que quase a mata. a omissão da culpa, a não acusação
do amigo, o ato de constância daquela menina nos instiga a perceber aquele
empurrão como um ato de amor, e a compreender que a morte, que se mostrou
próxima naquele episódio, foi gerado por um movimento, por uma quebra da
imobilidade. nem na ação e nem na passividade, nada de fato se concretizou: nem
a morte, nem o amor.
porém, após a construção de toda essas reflexões incitantes sobre a
impossibilidade do movimento e igualmente da constância, a autora se entrega ao
óbvio, e mantém as personagens da mesma maneira que os conhecemos: imóveis.
esse fato nos faz retomar o clássico “esperando godot” de samuel beckett, no
qual duas personagens aguardam a chegada de godot (god!) em vão, metáfora maior
do vazio das relações que desembocam numa imobilidade total. o texto de sara
aponta para uma nova/outra reflexão acerca do tédio, mas sucumbe e não avança
às já conhecidas fórmulas de retratação da imobilidade, tão repetidas desde as
palavras de beckett.
mais informações sobre o projeto em: www.janeladedramaturgia.wordpress.com
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